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Agrotec

Crise no setor dos cereais e a necessidade de valorizar o que é Nacional

Em 2022, a produção de cereais caiu para o nível mais baixo dos últimos 100 anos, em Portugal. A seca extrema e os aumentos dos custos de produção estão na base do abandono das culturas cerealíferas.

A área ocupada pela plantação de cereais em Portugal, neste momento, ronda os 103 000 hectares, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE). As searas que foram semeadas tardiamente “não germinaram, devido à ausência de chuva no mês de janeiro, sendo a situação muito preocupante em todo Alentejo (região que representou mais de três quartos da produção de cereais de inverno nos últimos cinco anos)”, aponta o INE. Nesse mês, o nível de armazenamento nas albufeiras do Continente era inferior ao registado nas secas das duas últimas décadas.

Fomos falar com 3 intervenientes: Carlos Amaral, Presidente da Associação de Orizicultores de Portugal (AOP); José Palha, Presidente da direção da Associação Nacional de Produtores de Proteaginosas, Oleaginosas e Cereais (ANPOC) e Tiago Silva Pinto, Secretário-geral da Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo (ANPROMIS) sobre a crise no sector e as estratégias e soluções para lidar com a mesma.

Texto Carolina Mateus

Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais (ENPPC)

Passaram três anos desde que o Governo aprovou a ENPPC, com um objetivo de «atingir num horizonte de cinco anos, um grau de autoaprovisionamento em cereais de cerca de 40%, correspondendo 80% ao arroz, 50% ao milho e 20% aos cereais praganosos», como explica Carlos Amaral da AOP.

No entanto, Tiago Pinto da ANPROMIS, afirma que apesar de ter sido demonstrado «(...) um sinal para o sector agrícola de que o Governo estava preocupado com a excessiva dependência do nosso país em relação à importação de cereais». Passados três anos, «(...) importa realçar que algumas das principais medidas previstas nesta estratégia, lamentavelmente, ainda não foram implementadas, como é exemplo o pagamento ligado para o sector dos cereais».

Relativamente ao mesmo tema, a ANPOC acrescenta: «(...) têm-se notado avanços significativos na implantação da estratégia, em particular no que toca ao evoluir das ações que a produção se propôs desenvolver ou que pode, diretamente, influenciar. Falo, essencialmente, das ações que dizem respeito ao 1º grande objetivo estratégico, que abrange a consolidação das áreas de produção, nomeadamente através da potenciação da inovação e da transferência de conhecimento; e das ações que dizem respeito ao 2º grande objetivo estratégico que é o da criação de valor na fileira dos cereais. Em concreto, e por exemplo, temos feito um trabalho muito consistente através do CEREALTECH – o Centro Nacional de Competências dos Cereais Praganosos, Oleaginosas e Proteaginosas que permitiu, por um lado, definir a Agenda de Inovação para o setor e potenciar a capacitação e a transferência de conhecimento e, por outro lado, reforçar ainda mais as relações da fileira; e a criação da marca Cereais do Alentejo, que tem verificado um crescimento exponencial. Nessa medida, tem sido um enorme sucesso de trabalho em fileira e valorização da marca, que se traduz também por uma gama cada vez maior de produtos».

Reforma da PAC: Pagamento ligado e ambições ambientais

«A manutenção do Pagamento ligado nesta Reforma da PAC (Política Agrícola Comum) é absolutamente essencial para o sector, pois é precisamente o que permite a viabilidade da produção, garantindo ao consumidor um preço acessível. A cultura não seria viável sem pagamento e esta é uma realidade incontornável. Portugal no PEPAC que apresentou a Bruxelas, apresentou o arroz como um dos sectores beneficiários do pagamento ligado. Este ano, com o aumento dos custos de produção (energia, fitofármacos, fertilizantes, ...), se não houver um aumento de preços, a cultura deixa de ser viável do ponto de vista económico e podemos ter um problema de abandono, o que deitaria por terra quaisquer ambições de autoaprovisionamento em sede de ENPCC. Para além do pagamento ligado é muito importante que o Governo desenhe eco esquemas e medidas agroambientais que sejam acessíveis a um sector tão específico como é o sector orizícola. Se as medidas não forem feitas para encaixar na especificidade do sector então os produtores não irão conseguir compensar a parte da conta de cultura que não é remunerada pelo mercado. É precisamente aqui que o Governo tem que ser coerente e alinhar o desígnio nacional propalado na ENPCC com as medidas da nova PAC, com aplicação a partir de janeiro de 2023», defende Carlos Amaral da AOP.

Sobre as medidas ambientais, a ANPROMIS, tem a acrescentar: «O sector agrícola tem-se revelado nos últimos anos como o verdadeiro guardião do ambiente, pois da sua preservação depende a sua atividade. A preservação do ambiente é cada vez mais uma preocupação dos produtores nacionais de milho. A expressão que as medidas ambientais vão ter na nova PAC é uma realidade, pelo que importa a Administração articular com os agricultores nacionais um pacote de medidas que sejam adaptadas, não só às reais necessidades do sector, como possa ser adotado pelos produtores portugueses».

Para José Palha, a sustentabilidade ambiental é um ponto fundamental. «A ANPOC tem vindo a trabalhar no sentido de medir o impacto da atividade agrícola no ambiente e nos serviços dos ecossistemas. Desenvolvemos, nos últimos anos, dois projetos que permitiram testemunhar precisamente que, mais importante do que “o que se faz”, é o “como se faz”. Um desses projetos – o BPA.Eco –, já terminou e que pode ser consultado em www.bpaeco.com, analisou e identificou boas práticas agrícolas promotoras dos serviços, dos ecossistemas em cinco tipos de explorações diferentes de modo a criar um gradiente de intensificação. O objetivo era mostrar como determinadas práticas podem ter impactos muito positivos na produtividade e, ao mesmo tempo, promover a biodiversidade. A outra iniciativa em que estamos envolvidos, juntamente com o Clube de Produtores Continente, o CIBIO e a Palombar, é o projeto “Searas de trigo com biodiversidade: salvemos a Águia-caçadeira”. A águia-caçadeira, ou tartaranhão-caçador, é uma das aves mais afetadas pela conversão das searas em pastagens permanentes».

Autoaprovisionamento de cereais e dependência externa do país

«A implementação do pagamento ligado para os cereais afigura-se essencial para contrariar a preocupante redução da área de cereais, que se tem verificado nos últimos anos. A não implementação desta ajuda pode inviabilizar, de forma irreversível, o necessário aumento da área de cereais no nosso país», refere a ANPROMIS.

A ANPOC acrescenta que «dadas as condições edafoclimáticas de Portugal, marcadas por um clima mediterrânico extremado de forma cada vez mais visível pelo fenómeno das alterações climáticas – este ano é, precisamente, mais um grande exemplo desta condicionante, que inclusivamente alargou a situação de seca a todo o território nacional –, não podemos almejar atingir a autossuficiência. Mas é possível aumentar o grau de autoaprovisionamento. Uma das principais medidas é, sem dúvida, o retomar da ajuda ligada. Com efeito, quando esta foi retirada na reforma de 2011, foi notória a redução da produção. Apesar de ser um valor relativamente baixo, a ajuda dá ao produtor uma garantia de rentabilidade o que, em zonas menos produtivas, pode significar a diferença entre semear ou não semear. Em segundo lugar, temos a valorização da produção. Portugal tem condições para produzir cereais com muita qualidade. Tanto a indústria como a distribuição já reconhecem esta qualidade. E, com a criação da marca "Cereais do Alentejo", essa qualidade passou a ter uma identidade, agora também reconhecida pelo consumidor. Esta valorização da produção permite que o agricultor não fique ao sabor da volatilidade dos mercados, conseguindo contratos plurianuais de venda de cereal, com preços mais ou menos estáveis, o que diminui consideravelmente o fator risco. Finalmente, outra das medidas que julgamos essenciais para o aumento da produtividade é a utilização de cada vez mais inovação e tecnologia. Só assim poderemos ter uma utilização dos recursos mais eficiente, reduzindo custos e, simultaneamente, protegendo o ambiente».

Comportamento do mercado global

«Efetivamente, o comportamento do mercado global não tem ajudado. O maior problema, atualmente, é o aumento exacerbadíssimo dos fatores de produção. Muito do capital de confiança e valorização, que obtivemos nos anos anteriores, acaba por ser abafado por esta perda de competitividade devida ao aumento exponencial das contas de cultura. Estamos num patamar em que ninguém ganha: nem a produção, nem a transformação, nem a distribuição, nem o cliente. A grande diferença agora é que a fileira trabalha em bloco. Em conjunto e com toda a transparência, temos tentado distribuir as perdas por todos os elos da cadeia. Sem o trabalho de valorização já desenvolvido, esta concertação de esforços não teria razão de ser e não se teria verificado. A força da fileira reside, precisamente, na sua união e na compreensão das dificuldades de cada componente. E esse é um dos maiores sucessos do nosso trabalho. Para a produção, esta união faz toda a diferença, pois traz uma componente de confiança que antes não existia ou, pelo menos, não era tão marcada» explica a ANPOC.

A ANPROMIS ainda acrescenta: «ANPROMIS e a ANPOC têm-se mobilizado na criação de uma Organização Interprofissional dos Cereais que permita juntar numa mesma estrutura os diversos players, com o objetivo de valorizar a produção ao longo de toda a fileira. O delineamento de ações de promoção, a participação conjunta em exposições e a definição de uma estratégia comum de comunicação revelam- -se ações muito importantes nesta valorização».

Diálogo entre a produção e a indústria

«O diálogo que existe entre a produção e a indústria agroalimentar tem-se estreitado nos últimos anos, tendo possibilitado que a quantidade de grão destinada a esta ativada seja cada vez maior. Esta aposta tem permitido uma valorização da produção nacional e o reconhecimento de que o milho nacional é de grande qualidade», diz ANPROMIS.

«Esse diálogo funciona essencialmente através do Clube Português dos Cereais de Qualidade, que tem já 22 anos de existência, e de todo o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido no âmbito da marca "Cereais do Alentejo"», acrescenta a ANPOC.

Valorização de marcas de origem nacional

«A marca "Cereais do Alentejo" é o melhor exemplo do que a produção tem feito para tirar partido dessa valorização. Um projeto que começou no trigo mole, para a indústria da panificação, mas que consistentemente se diversificou, passando a incluir o trigo duro para a indústria da semolaria, ou a cevada dística, para a indústria cervejeira. Tendo também evoluído para outras utilizações, como sendo a farinha de trigo para usos culinários». «Temos, hoje, uma gama bastante vasta de produtos à disposição dos consumidores, com cada vez mais referências dentro de cada uma dessas gamas», revela a criadora da marca 100% nacional.

Sobre o arroz a AOP, revela que a área cultivada se tem mantido estável na última década, apenas tendo sido afetada pela seca. Portugal é o terceiro país produtor da Europa em área cultivada e a qualidade de arroz produzido é elevada, quando comparada com o arroz importado de origem asiática e americana. Ainda não é visível a valorização pelo consumidor português do produto nacional. Por exemplo, o programa “Portugal Sou Eu” é um mecanismo que permite a incorporação de 50% de produto importado. A legislação que definiu que o “arroz Carolino” tem que ser cultivado em Portugal pode ajudar a melhorar esse reconhecimento. Por outro lado, está em curso uma campanha de promoção do Arroz Europeu que ajudará a defender o arroz produzido em Portugal, como um produto com garantia de qualidade e segurança alimentar», acrescenta Carlos Amaral.

Inovação tecnológica: Um caminho para a sustentabilidade

«Julgamos que a inovação, a capacitação e a transferência de conhecimento são a base de todo o desenvolvimento e de uma verdadeira agroecologia. E, felizmente, os bons exemplos vão-se multiplicando. O agricultor de há 20 anos não tem nada a ver com o agricultor de hoje, que faz uso de um conjunto cada vez maior de dados e ferramentas. E não é preciso ser-se um expert para as utilizar», conta José Palha. «A agricultura de precisão é essencial para melhorar a produtividade e aumentar a sustentabilidade com aplicação seletiva dos produtos fitossanitários. A deteção precoce de infestantes, e/ou problemas através de informação via satélite, e a utilização de drones deverá ser uma realidade num futuro próximo», acrescenta a AOP.

A ANPROMIS complementa ainda: «Os produtores nacionais de milho encontram-se na vanguarda da inovação tecnológica, usando, de uma forma cada vez mais recorrente, cartas de condutividade elétrica do solo, sondas de humidade, imagens NDVI e mapas de produtividade, entre muitas outras. Aplicar os fatores de produção de uma forma cada mais eficiente é o caminho certo para aumentar a sustentabilidade ambiental das explorações agrícolas nacionais, contribuindo também para uma maior competitividade económica dos produtores portugueses».

Melhoramento genético para a sustentabilidade do sistema

«O projecto "CAEA AGRI – Caminhos de Adaptação de Espécies Agrícolas às Alterações Climáticas” implementado em conjunto com o INIAV, COTHN e ANSEME teve como objetivo identificar algumas das variedades de milho existentes no espólio do Banco Português de Germoplasma Vegetal, que tenham características que lhes permitam maior resistência às alterações climáticas. Este trabalho é muito importante, pois têm-se constatado que as variedades tradicionais possuem genes mais adaptados e resistentes às restrições de água que atravessamos», explica a ANPROMIS.

Alterações climáticas, a eficiência no uso da água e o projeto AQUACER

«O setor deve melhorar a eficiência, em todo o sistema de rega, desde os perímetros de rega às explorações agrícolas, com gestão computacional e redução das perdas dos circuitos através das reparações dos canais de rega», explica Carlos Amaral.

A ANPOC reitera ainda: «O maneio dos cereais praganosos, sendo culturas de outono/inverno, acompanha, de alguma forma o ciclo meteorológico. No entanto, e de forma cada vez mais relevante, dadas as alterações climáticas, a rega é um dos fatores de produção que mais afeta a competitividade destas culturas. E acontece que estas culturas são particularmente eficientes no uso da água. Uma determinada quantidade de água, aplicada em fases-chave do ciclo cultural, pode fazer uma diferença abismal na hora da colheita. E é neste uso eficiente da água que estamos agora a trabalhar ativamente, nomeadamente através do projeto aQuacer, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que junta o setor dos cereais: cereais praganosos (ANPOC), milho (ANPROMIS) e arroz (COTARROZ), o COTR e o IPMA. Em conjunto, estamos a desenvolver uma série de ações que visam, para cada cultura e em função das zonas geográficas onde mais se praticam, promover um uso mais eficiente da água. Acreditamos que a transferência de conhecimento e a capacitação são ferramentas essenciais. Refiro-me, naturalmente, às ações que estão ao nosso alcance. Do ponto de vista político é obrigatória uma definição de uma política integrada da água, que potencie a sua poupança e a criação de mais reservas. A agricultura não vive sem água e sem agricultura não há alimento».

Tiago Pinto clarifica, ainda, que os produtores nacionais estão cientes de que a água representa um bem, que deve ser gerido de uma forma cada vez mais eficiente. Sendo a prioridade produzir o máximo, por cada metro cubico de água. «A revisão periódica dos equipamentos de rega, as utilizações de sondas de humidade, entre outros, são medidas que os agricultores já não dispensam. No entanto, o nosso país é bastante heterogéneo, pelo que importa difundir o conhecimento pelo maior número de produtores possível. O projeto financiando pela Fundação Calouste Gulbenkian, tem por objetivo promover diversas ações de capacitação destinada a agricultores e técnicos, em três zonas de produção muito diferentes – Sorraia, Tejo e Mondego, como forma de fomentar um uso cada vez mais eficiente da água» conclui.

Guerra na Europa

Estas declarações, dadas pelos responsáveis das associações foram feitas, por todos os intervenientes, antes do contexto mundial que vivemos: o conflito no leste da Europa. Com o aumento dos preços da energia soma-se agora a subida dos cereais, bem como de outros bens alimentares. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o indicador de referência para os preços mundiais dos alimentos subiu 24,1% em fevereiro, atingindo um máximo histórico.

Nota de Redação:

Artigo publicado na edição n.º 42 da Revista AGROTEC, no âmbito do Dossier "Estratégias para o setor dos cereais".

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