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Agrotec

A Europa e a urgência de um futuro coletivo para a agricultura

Ao longo de três semanas, a AJAP e o Crédito Agrícola vão promover três debates com personalidades ligadas ao universo agrícola, com uma perspetiva sobre o futuro do setor pós-pandemia. A segunda conferência aconteceu sob a temática "Europa: A urgência de um futuro coletivo".

Agricultura

O evento, que foi transmitido nas redes sociais da AJAP e do Crédito Agrícola, contou com a presença de Maria do Céu Albuquerque, ministra da Agricultura que abriu novamente o evento via vídeo previamente gravado; José Manuel Fernandes, deputado ao Parlamento Europeu; Maria do Céu Patrão Neves, professora catedrática; Arlindo Cunha, professor universitário; Luís Campos Ferreira, gestor e ex-secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação e Firmino Cordeiro, diretor-geral da Associação dos Jovens Agricultores de Portugal.

A abrir o webinário, a titular da pasta da Agricultura destacou a importância da Política Agrícola Comum, explicou a sua evolução e reforçou que deve existir união para se atingir um propósito único. Maria do Céu Albuquerque relembrou que a nova PAC só irá iniciar-se em 2023, realçando que este é o espaço de tempo «necessário» para compreendermos e combatermos a pandemia sanitária. «Não podemos menosprezar que, no futuro, teremos que responder a novos desafios, que já o eram, mas aumentaram devido à Covid-19», relembrou. 

No seguimento deste pensamento, sobre a União Europeia, a ministra da Agricultura destacou ser «fundamental» a existência de uma «resposta europeia forte e concertada», defendendo que o pacote de medidas atuais é «um contributo positivo, mas não definitivo, pois não responde em pleno a alguns setores que registam maiores dificuldades».

«Só a união poderá ser resposta. Esperamos uma resposta mais ambiciosa do pacote para o setor agroalimentar e que esta resposta reforçada se reflita no futuro quadro financeiro, essencial para o futuro da UE. Esperamos que se reconheça e concretize a importância da nossa ação coletiva e a importância que a PAC e do mercado interno têm e vão ter na construção europeia, que aconteceu ontem, que acontece agora e acontecerá no futuro», concluiu.

Seguiu-se Firmino Cordeiro, diretor-geral da AJAP, que deu as boas-vindas aos convidados, explicando que se encontravam presentes para debater sobre um «desafio enorme». No início do evento, o representante afirmou ter «esperança que possamos traçar alguns desafios interessantes, visto que o tema é delicadíssimo e as informações que têm chegado não têm sido as mais favoráveis», referindo-se ao panôrama catastrófico que os economistas estão a prever. Firmino Cordeiro terminou a sua curta declaração inicial a apelar à solidariedade entre os países da UE.

O consumidor e a Política Agrícola Comum

Maria do Céu Patrão Neves, professora catedrática, foi a primeira oradora da tarde, tendo iniciado o seu primeiro discurso, tal como os restantes, abordando o vídeo da ministra da Agricultura. «A essência da agricultura, nos tempos mais recentes, tem estado bastante apagada. O retomarmos a essência da agricultura e a origem da PAC é, de facto, essencial», afirmou, enaltecendo as palavras de ânimo deixadas pela ministra da Agricultura aos agricultores e produtores. 

Sobre a PAC e o «tempo de extraordinário desafio» que vivemos, a professora defendeu que a adaptação da Política Agrícola Comum aos inúmeros desafios que ocorreram ao longo deste tempo «demonstra que há uma grande capacidade da resiliência da agricultura». Perante tal, Maria do Céu Neves acredita que. agora, «parece que as pessoas redescobriram a importância da agricultura».

Segundo a própria, «este aspeto é muito importante se pensarmos em termos daquilo que têm sido das últimas PAC's, com o orçamento sempre a diminuir. É importante relembrar que o orçamento tem vindo sempre a diminuir e em 2014, pela primeira vez, não foi a política comum com o maior orçamento da UE». A professora catedrática explica que tal aconteceu pela contestação dos europeus, que se esqueceram que «muito do apoio que vai para a agricultura tem repercussão no consumidor», pois os preços do supermercado têm vindo a diminuir. «O apoio dado à agricultura é um apoio dado ao consumidor, que pode, assim, adquirir produtos a um preço mais baixo.Este é o momento para ultrapassarmos estes problemas e avançarmos para a razão de ser da agricultura», destacando que agora são 27 países, que existe um orçamento diminuído e outras prioridades de saúde pública, mas talvez os consumidores finais compreendam melhor a importância do setor agroalimentar. 

Sobre a primeira lição da Covid-19 que fica na agricultura, a professora destaca que «o setor agrícola não tem muito tempo, precisa de medidas rápidas», defendendo que se deve ter a «capacidade para prever e antecipar». Perante a conjectura atual, Maria do Céu Neves congratula-se que estejam a falar novamente da questão da auto-suficiência, defendendo que esta deve ser europeia e que se devem «compreender as necessidades e compreender quem consegue produzir o que de forma mais atraente», para perceber como se deve investir nos diversos setores em cada país.

Sobre a potencial atuação da União Europeia, num segundo momento da conferência, a professora relembrou que, dada a complexidade da situação, «não podemos cair na ilusão que existem respostas únicas, que seriam sempre simplistas para enfrentarmos o problema que temos entre nós».

«Há uma séries de instrumentos europeus que estão disponíveis para os países e é necessário perceber como conjugar estes para tirar o maior partido», fazendo-o com transparência e um plano bem fundamentado, a fim de «não perder o tecido produtivo que vinha sendo estabelecido há largas décadas e que, antes da Covid-19, estava num momento confortável». 

Segundo a própria, «o país não se pode alienar das suas responsabilidades e deve desenhar uma política de suporte e apoio para a agricultura em geral, muito cirurgicamente dirigida para os setores que são fundamentais no tecido agrícola, económico e exportador para mitigar os problemas. E, depois, olhar para o futuro, perceber o que podemos fazer a partir daqui», destacando ainda que, «se há algo que a Covid-19 vai impor à sociedade, é a digitalização acelerada» e a importância da investigação. 

«Acredito que exista trabalho a fazer a nível de formação dos agricultores e das nossas empresas; a nível de criatividade, percebendo quais são as aberturas e o mundo sem fronteiras que as novas tecnologias nos permitem ter; e como a agricultura pode, com esta flexibilidade que demonstrou ao longo da sua história, responder ao desafio digital. Resumindo, eu penso que é na combinação de todos estes fatores que vamos conseguir responder a uma agricultura pós Covid-19 e também da articulação das responsabilidades a nível europeu, nacional e setor agrícola a setor agrícola», concluiu. 

«Corremos o risco de muitos dos nossos agricultores desaparecerem»

Arlindo Cunha, professor universitário, foi o segundo interveniente da tarde, tendo começado por abordar a anteriormente referidade capacidade da PAC de se ajustar ao longo dos tempos. «Esta é uma questão fundamental face aos dias que vivemos», começou por explicar. «De facto, como foi referido, a PAC nasceu para fazer face a uma situação de crise na época, na falta de alimentos no cenário pós-guerra. Depois, foi vítima do seu próprio sucesso, porque criou, no terreno, um conjunto de dispositivos tão fortes e generosos de apoio à agricultura que, em menos de uma década, já estava na situação oposta, com excedentes. Andou três décadas a tentar minimizar tal e, a partir dos anos 90, entrou numa fase de equilíbrio».

Já sobre a situação atual, Arlindo Cunha defende que «temos perante nós um conjunto de crises seríssimas nos diversos setores», destcando que vários se encontram em uma «situação dramática», nomeadamente os pequenos produtos e as empresas unifamiliares, que não encontram os apoios mais apropriados para as suas explorações e empresas. O professor universitária defende, então, que se deve trabalhar no plano dos rendimentos e nos apoios de mercado, apontando que as atuais medidas europeias se revelam insuficientes para setores como o dos vinhos.

«Estamos perante uma situação anormal de mercados, com uma tendência terrível para o decréscimo de preços e com incapacidade para escoar os produtos. E o que faz a PAC? Remete-nos para os envelopes nacionais, o que não irá resultar», defende. «Nesta altura, temos perante nós, nos mercados agrícolas, uma crise de excesso face ao produto. Não é excesso de oferta, esta é a mesma praticamente, o que se contraiu imenso foi a procura dada a pandemia». Arlindo Cunha concluiu a sua intervenção evidenciando que «mobilizar os instrumentos antigos da PAC e aplica-los novamente», éssencial porque, se não o fizermos nesta altura, «corremos o risco de muitos dos nossos agricultores desaparecerem»

Os cortes «inaceitáveis» na próxima PAC e as questões para o futuro

A intervenção de José Manuel Fernandes, deputado ao Parlamento Europeu, ficou marcada pela sua preocupação perante os cortes que a Comissão Europeia pretende realizar na próxima PAC. Segundo o próprio, estes revelam-se «inaceitáveis». O deputado abordou a questão dos cortes no FEADER, que «não são aceitáveis e têm passado despercebidos» e explicou que o corte previsto para o desenvolvimento rural é de 1200 milhões de euros, quase 26%. 

O eurodeputado defende que, antes da crise da Covid-19, falava-se muito pouco da PAC e de dois pilares específicos, sendo um deles o dos pagamentos diretos e que poderá sofrer um corte de 500 milhões. «Em termos de pacote global da União Europeia, o corte é de 15%, algo verdadeiramente inaceitável. Em Portugal, o corte é de 10% no primeiro pilar e de 25,9% no segundo. Na proposta do Parlamento europeu, foram eliminados estes cortes, sendo reforçado o montate da Comissão em 1700 milhões de euros», explica.

«É verdade que a crise deveria ajudar-nos a perceber que só venceremos os problemas em conjunto», afirma, refletindo sobre como devemos observar a agricultura como um pilar estratégico para garantirmos melhores condições de vida para toda a União Europeia. Para tal, José Manuel Fernandes defende que deve ocorrer uma «sinergia dos fundos em relação à agricultura. O Horizonte europa, o próximo programa de investigação, tem que ajudar a agricultura. Os próprios fundos do Portugal 2020 também devem ajudar. A sinergia dos fundos é essencial para apoiarmos o agricultor e não nos esquecermos do desenvolvimento rural».

Sobre os programas de investigação, o deputado acredita que devem se reforçados. Segundo o próprio, é agora «importante saber o que o governo pretende realizar com o Portugal 2020 até junho de 2021, pois há muitos milhares de euros por comprometer. Quanto é pretendido investir na agricultura? Quanto pretende investir na restauração, que é essencial para ajudar os pequenos agricultores? É essencial que exista transparência, pois o governo está autorizado a fazer do Portugal 2020 praticamente tudo o que quiser, com flexibilidade máxima».

O deputado lançou ainda um apelo a uma maior intervenção de Portugal nas decisões da Política Agrícola Comum, defendendo que o governo português deve posicionar-se e dar a entender o que precisa. 

A inovação e o marketing

Luís Campos Ferreira, gestor e ex-secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, iniciou a sua intervenção por destacar que agora existem duas questões fundamentais. A primeira passa por compreender como reagir a este vírus económico que se instalou na agricultura fruto da Covid-19. Segundo o gestor, são necessárias medidas suplementares, urgentes e justas. A segunda questão parece ainda mais ampla: Como aproveitar esta crise para criarmos pilares mais fortes e dinâmicos para o futuro do setor? 

Segundo o próprio, antes disso, existem «questões de base que devem ser resolvidas», como a rentabilidade baixa de quem trabalha no setor, o acesso às terras, os apoios financeiros suplementares, o acesso ao crédito e a falta de mão-de-obra. Além disso, o ex-secretário defende que «a Europa tem um caminho muito longo para percorrer ao nível do que é a densificação e dos pilares deste setor. Há um trabalho de fundo a fazer e podem aproveitar esta crise para lhe dar uma outra dinâmica».

Sobre o desenvolvimento, o gestor acredita que as ideias «são a ignição do desenvolvimento e do progresso social», no entanto, «é muito difícil materializar boas ideias se não existir um envelope financeiro que as sustente, acompanhe e incentivo». Luís Campos Ferreira defende que existe uma necessidade de uma maior cooperação e incentivo das tecnologias, como a inteligência artificial, a robótica e automação, mas que «também não podemos esquecer aquilo que é o marketing». 

«Podemos ser excelentes produtores de vinho, com níveis de qualidade que podem competir com outros países, com denominações de origem até historicamente mais fortes mas, o que temos é de adicionar a um bom produto aquilo que é o marketingdesse produto. Temos bons vinhos, com belíssimas garrafas, rótulos, anúncios e eventos que promovem esses vinhos. Como tal, o motor da agricultura deve também usufruir de outros fundos que existem para outras áreas, como esta», exemplifica. 

A problemática dos jovens agricultores

Durante a sua intervenção final, Firmino Cordeiro começou por afirmar que, no passado, se os país aconselhavam os jovens a apostar na agricultura, tal já não acontece, relacionando tal com a população envelhecida da Europa. «Portugal é dos países europeus mais envelhecido e menos rejuvenescido, o que quer dizer que é preciso repensar instrumentos e a liberdade de utilização do primeiro e segundo pilares, sendo o segundo ainda muito importante para o nosso país», referindo-se à política de desenvolvimento rural. 

«Temos que criar políticas de incentivo para que os jovens possam regressar ao interior e para que lá construam não só atividades agrícolas, mas também atividades acessórias e complementares», defende. 

Artigo originalmente publicado no Portal Agronegócios

Aceda ao artigo sobre o primeiro debate do Ciclo de Conferências: A Agricultura para lá da Covid-19: A perspetiva nacional, um desafio crescente