Pode a Agricultura tirar partido dos biofertilizantes?
M. Ângelo Rodrigues1, Carlos M. Correia2 e Margarida Arrobas1
1 CIMO, Instituto Politécnico de Bragança (IPBragança)
2 CITAB, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD)
CONCEITO DE BIOFERTILIZANTES
A definição de biofertilizante pode variar, dependendo do contexto social em que se aplica ou da região do globo. Em meio científico, um biofertilizante tende a ser definido como uma substância que contêm organismos vivos que, quando aplicados a uma semente, sobre uma planta ou ao solo, colonizam a rizosfera ou o interior da planta aumentando o fornecimento ou a biodisponibilidade de nutrientes no solo, beneficiando o crescimento da planta (Vessey, 2003). Recentemente, a União Europeia integrou os produtos comerciais contendo microrganismos benéficos (fungos ou bactérias) no grupo dos “bioestimulantes para plantas” [Regulamento (UE) 2019/1009, de 5 de junho]. De forma simplificada, um bioestimulante para plantas é um produto que promove a nutrição ou a tolerância das plantas a stresses bióticos independentemente do seu conteúdo em nutrientes (du Jardin et al,. 2020).
FIGURA 1. Nódulos de leguminosas onde é fixado azoto por bactérias procariotas.
MICRORGANISMOS FIXADORES DE AZOTO
De entre os biofertilizantes que atingiram notoriedade comercial destacam-se os que contêm microrganismos fixadores de azoto. Os microrganismos fixadores de azoto são organismos procariotas, dos reinos Bacteria e Archaea. Têm como característica comum o complexo enzimático nitrogenase que permite a rotura da molécula de dinitrogénio (N2) e fixar esse azoto em formas bioativas nos sistemas biológicos. O N2 é o gás mais abundante da atmosfera, mas é praticamente inerte, devido à elevada estabilidade química conferida pela ligação covalente tripa que une os dois átomos de azoto. Esse azoto pode, contudo, ser usado pelos microrganismos fixadores, que depois o transferem para os ecossistemas. Estima-se que a fixação biológica nos ecossistemas tenha uma expressão quantitativa semelhante ao azoto fixado pela indústria dos adubos azotados pelo processo Haber-Bosch (Havlin et al., 2014).
Alguns microrganismos fixadores vivem livres na rizosfera sem relações especificas com hospedeiros. Estes podem ser heterotróficos, competindo no solo pelos substratos orgânicos disponíveis, tendo neste caso reduzida capacidade de fixação. Os fixadores livres podem também ser autotróficos fotossintéticos (cianobactérias), apresentando neste caso maior capacidade de fixação, mas sendo o seu papel incomparavelmente mais relevante em ecossistemas aquáticos que em agro-sistemas. Outros organismos fixadores podem ser endofíticos facultativos, isto é, viver no solo, frequentemente associados à rizosfera, ou no interior das plantas. Nestes casos aumenta a capacidade de fixação pela proteção que o hospedeiro lhes confere e pelo acesso privilegiado a exsudados radiculares. Os microrganismos fixadores de azoto podem também ser endofíticos obrigatórios, vivendo dispersos no interior dos tecidos das plantas. Alguns exemplos importantes são as espécies Gluconacetobacter (=Acetobacter) diazotrophicus, que vivem localizados em praticamente todos os tecidos de plantas ricas em açúcares (cana-de-açúcar, batata-doce), Herbaspirillum seropedicae, que vivem nos tecidos de diversas plantas, sobretudo gramíneas (cana-de-açúcar, milho, sorgo, arroz…) e Anabaena azollae, que vivem em simbiose com o feto aquático do género Azolla, sendo este cultivado como fonte de azoto na cultura do arroz. Comparativamente aos anteriores têm muito maior capacidade de fixação (Cooper e Scherer, 2012).
Contudo, os microrganismos fixadores de azoto mais estudados e que atingiram maior notoriedade e importância económica para o setor agrícola, são conhecidos como rizóbios. Estes microrganismos são ainda endofíticos obrigatórios e estabelecem uma relação de simbiose com leguminosas noduladas, de onde se destacam os géneros Allorhizobium, Azorhizobium, Bradyrhizobium, Mesorhizobium, Sinorhizobium, Rhizobium e ainda outras espécies importantes pertencentes a géneros diversos. Estes microrganismos vivem nos nódulos que se formam no sistema radicular das plantas (Figura 1), após reconhecimento mútuo entre simbiontes, recebendo fotoassimilados pela corrente floémica, tal como os tecidos da própria planta, e fornecendo em troca azoto na forma de aminoácidos de baixa razão carbono/azoto que as plantas transportam para as partes em crescimento. A elevada capacidade de fixação deve-se ao fornecimento regular de fotoassimilados pela planta e à proteção que a leg-hemoglobina confere na regulação do oxigénio ao complexo enzimático nitrogenase. Em algumas culturas, como a luzerna, foram registadas quantidades de azoto fixado superiores a 700 kg N ha-1 ano-1 (Russelle, 2008). Outras plantas, como os amieiros, são também capazes de formar nódulos radiculares que alojam actinomicetes do género Frankia com elevada capacidade de fixar azoto, sendo, contudo, estes sistemas fixadores, de menor importância para o setor agrícola.
OUTROS MICRORGANISMOS BENÉFICOS
Os benefícios potenciais da presença na rizosfera ou nos tecidos das plantas de microrganismos não se esgotam nos fixadores de azoto. Diversas bactérias (Bacillus sp., Pseudomonas sp.) e fungos (Penicillium sp., Aspergillus sp.) que vivem na rizosfera e tiram partido do acesso privilegiado aos exsudados radiculares podem beneficiar a planta através da solubilização de fósforo. Outros microrganismos, designadamente fungos, vivendo em contacto mais próximo com os tecidos das plantas podem absorver e mobilizar fósforo de forma direta para as plantas. Neste grupo podem incluir-se fungos micorrízicos arbusculares (Glomus sp., Gigaspora sp., Acaulospora sp.), fungos ectomicorrízicos (Laccaria sp., Pisolithus sp., Boletus sp.) entre diversos outros. No mercado dos biofertilizantes os primeiros tendem a ser designados de solubilizadores de fósforo e os segundos de mobilizadores de fósforo (Kumar et al., 2017). No presente está também suficientemente demonstrado que as associações simbióticas com uma grande diversidade de microrganismos, como os fungos micorrízicos arbusculares ou ectomicorrízicos, podem beneficiar a planta não só no acesso a fósforo, mas também a nutrientes como azoto, potássio, cálcio e diversos outros, dependendo das condições de cultivo (Koller et al., 2013; Miransari et al., 2013; Tekaya et al., 2016).
Os microrganismos podem exercer muitos outros efeitos benéficos nas plantas para além das questões nutricionais. Nas últimas décadas multiplicaram-se os estudos e o conhecimento sobre interações benéficas entre microrganismos que colonizam a rizosfera ou que se encontram dispersos nos tecidos das plantas. Tem sido verificado que os alguns microrganismos podem reduzir a suscetibilidade das plantas a stresses abióticos, como stresse hídrico, condições de salinidade, acidez do solo ou presença de metais tóxicos, bem como a stresses bióticos causados por fungos patogénicos, bactérias, vírus e nemátodos (Calvo-Polanco et al., 2013; Lanfranco et al., 2016).
PAPEL DOS BIOFERTILIZANTES COMERCIAIS NA AGRICULTURA
Do ponto de vista comercial, os microrganismos fixadores de azoto levam grande avanço aos demais microrganismos benéficos. A utilização comercial de rizóbios para inoculação de sementes de leguminosas começou em 1885 nos Estados Unidos da América e na Inglaterra (Vessey, 2003). Desde então, a inoculação de sementes de leguminosas com rizóbios é feita de forma generalizada um pouco por todo o mundo desde as grandes culturas como a soja até às espécies usadas como forrageiras e pratenses (Figura 2).
FIGURA 2. Sementes comerciais de leguminosas inoculadas com rizóbios.
Atualmente, não se questionam os múltiplos benefícios que certos microrganismos podem ter para as plantas, em resultado de associações otimizadas ao longo de milhões de anos de evolução, em que o sucesso de uma espécie está inerentemente associado ao sucesso da outra. Alguns destes microrganismos são inclusivamente biotróficos obrigatórios, o que significa que a sua existência depende estritamente da existência da planta. O que se passa atualmente é que excluindo a situação da inoculação das leguminosas com estirpes específicas de rizóbios, o uso de outros biofertilizantes não é uma garantia de sucesso para os produtores. A maior parte destes organismos são ubíquos na natureza, isto é, eles estão presentes nos solos, podendo infetar as plantas sem necessidade da aplicação de inoculantes comerciais. Por outro lado, as populações locais de microrganismos estão bem adaptadas ao meio, sendo menos provável o êxito com a introdução de populações de microrganismos de estirpes exóticas.
Do ponto de vista experimental são inúmeros os estudos que registaram benefícios para as plantas da aplicação de microrganismos benéficos ou biofertilizantes comerciais (Dag et al., 2009; Hu et al., 2009; Ouledali et al., 2018). Contudo, este tipo de experiências tende a decorrer em condições muito específicas, e com limitações bem conhecidas para o crescimento das plantas, o que facilita a observações de resultados positivos. Em solos agrícolas sem restrições específicas, os benefícios para as plantas decorrentes do uso de microrganismos benéficos não estão assegurados (Ågren et al., 2019; Rodrigues et al., 2021).
Em Bragança, por exemplo, foi utilizado um corretivo orgânico comercial enriquecido com microrganismos heterotróficos, fixadores livres de azoto, recomendado para a generalidade de culturas não leguminosas. Do ponto de vista teórico, colocar os microrganismos heterotróficos junto de uma fonte de carbono seria uma vantagem competitiva, que lhes permitiria fixar mais azoto. Como os corretivos orgânicos têm normalmente teores baixos de azoto (Rodrigues et al., 2006), na prática a expectativa era que os microrganismos fixadores acrescentassem azoto ao sistema e o fertilizante tivesse um efeito nas plantas comparável a um fertilizante inicialmente muito mais rico no nutriente. Os resultados mostraram que as plantas fertilizadas com o biofertilizante recuperaram mais 5,7 kg N ha-1 ano-1 que as plantas testemunha (Rodrigues et al., 2018). Ainda que tenha sido possível detetar um aumento da disponibilidade de N para as plantas, do ponto comercial parece pouco para que o produto possa ser recomendado aos produtores face a fontes de azoto alternativas mais económicas.
ORIENTAÇÃO PARA OS SETORES TRADICIONAIS DE SEQUEIRO
Os setores do olival e dos frutos secos, em crescimento no interior Norte de Portugal, estão maioritariamente baseados em sequeiro ou suportado em regadio deficiente com limitação hídrica evidente. É expectável que o stresse hídrico seja o grande constrangimento ecológico ao desenvolvimento dos setores, tendo também em conta o problema das alterações climáticas que tendem a agravar a situação já de si problemática. Por outro lado, dominam leptosolos de profundidade frequentemente inferior a 20 cm e ácidos, com limitações nutricionais diversas ao crescimento das plantas. O contexto parece adequado para que estes agro-sistemas possam tirar benefícios do uso de produtos comerciais com microrganismos benéficos. Há, contudo, um longo caminho a percorrer antes que o uso de biofertilizantes comerciais se possa recomendar de forma generalizada. Uma vez mais, com exceção dos microrganismos fixadores de azoto que se podem usar para inocular as sementes de leguminosas que se usam nos enrelvamentos das entrelinhas e que tem recebido alguma atenção em Portugal (Figura 3), o trabalho agronómico com biofertilizantes e o seu potencial na promoção da produtividade das culturas e no rendimento dos produtores é ainda insignificante. O tópico está, contudo, a ser desenvolvimento experimentalmente no âmbito de grupos operacionais dedicados a estas fileiras.
FIGURA 3. Coberto vegetal com leguminosas em amendoeira.
AGRADECIMENTOS
Grupo Operacional EGIS, estratégias para a gestão do solo e da água em espécies produtoras de frutos secos (Iniciativa ID 91). Grupo Operacional Novas práticas em olivais de sequeiro: estratégias de mitigação e adaptação às alterações climáticas (Iniciativa ID 278).
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