A cultura do Açafrão
Recentemente surgiu algum interesse em Portugal pela cultura do açafrão, cremos, também com a ajuda da divulgação que demos há anos, na revista AGROTEC, de um pequeno projeto que existiu na região da Guarda.
Por: Bernardo Madeira | Doutorado em Ciências Agrárias
Esta interessante iridácea, sub-espontânea em Portugal, adapta-se particularmente bem às regiões mais improdutivas e agrestes, e porque não mesmo dizer inóspitas, de Portugal, onde muito poucas outras plantas e muito menos culturas agrícolas se adaptam.
Antigamente muito tradicional na culinária portuguesa, porque não dizer ibérica, tem vindo a desaparecer resultado dos preços muito altos que este produto apresenta, a perda de hábito de consumo da culinária “slow food” tradicional e, porque não dizer, requintada apesar da rusticidade.
De tal modo tem desaparecido que ousamos dizer que toda uma geração de novas donas de casa nem sequer conhecem o açafrão (verdadeiro).
Em contrapartida, o aparecimento no mercado, há alguns anos, de um outro produto que roubou o nome do açafrão, a raiz da curcuma, a que chamam de açafrão das índias, levou a que surgissem algumas falsificações culinárias.
E este falso açafrão, que é uma “contrafação” linguística, não confere aos pratos a cor amarelo dourado, muito subtil do açafrão verdadeiro, nem sequer imita o sabor deste…
Portanto, para quem entende de comida, é exigente e tem dinheiro, o açafrão continua a ter mercado e a marcar presença. É comum vermos referido que o açafrão custa, no mercado, entre 1.000€ e os 4.000€ por kg, dependendo da pureza e da sua origem.
Porém, se fosse fácil produzir, provavelmente os preços não seriam estes, ou então… teria que ter propriedades alucinogénicas! Na verdade, há algumas dificuldades na sua produção e, sobretudo, é extremamente laborioso.
Ficam aqui algumas notas que sabemos sobre a sua cultura:
• O Açafrão é o produto comercial composto pelos estiletes (parte feminina) das flores do Crocus sativus (uma planta que também é usada em jardim, tal como outras flores do género Crocus).
• É uma planta sem caule, com um bolbo de onde emergem no final do Verão, à vez, as flores e de seguida as folhas, passando o auge do Verão (Junho e Julho) em dormência e o restante período do ano com folhas.
• O bolbo é sólido, esferoidal, esbranquiçado coberto por membranas de cor acastanhada.
• Todos os anos produz de 6 a 9 folhas, sem pecíolo, formando uma roseta.
• As flores são de cor lilás, com as pétalas unidas entre si, formando um tubo ou trombeta, hermafroditas e solitárias, nascendo em pequeno número no centro do bolbo. Do centro da flor sobressaem 3 estiletes (parte feminina), muito longos, de
cor vermelho dourado, que são, depois de secos, a parte comercialmente relevante e que é utilizada na culinária.
• Estes estiletes contêm uma matéria corante chamara cróccina e um óleo, amargo, que contribui para as qualidades culinárias, assim como o safranal, que é um composto que surge por hidrólise enzimática, no período de secagem dos estiletes, e que é
responsável pelo aroma característico.
• Crê-se que o consumo de uma grande quantidade pode ser tóxica, inclusivamente letal, em doses usuais são-lhe atribuídas algumas prováveis qualidades medicinais.
• O fruto é uma cápsula trilocular, deiscente (que se abre por uma fenda), contendo inúmeras sementes porém, a melhor forma de multiplicação é o aproveitamento dos novos bolbilhos que nascem em torno do bolbo principal, além de que raramente frutifica!
Ecologia
A planta é nativa da Ásia menor e Balcans, e cultivada na Península Ibérica, Grécia, India, Irão e França. Em Portugal aparecem espontâneos os Crocus carpetanus, o Crocus clusi (Açafrão bravo) e o Crocus astúricos.
Apesar de poder produzir desde o nível do mar, prefere alguma altitude, pois exige invernos rigorosos para o completo ciclo, sendo normal a sua cultura até aos 1.300 metros de altitude. Suporta frios e calores extremos, pelo que se adapta bem aos climas continentais da península ibérica.
É pouco exigente em água, mas há momentos críticos em que não pode faltar, precisamente antes da floração no final do Verão, para ajudar a desencadeá-la. Em compensação, a rega tem que ser realmente parcimoniosa, sob o risco de se
promover o crescimento de podridões.
A planta prefere os solos soltos, saibrosos, graníticos, eventualmente ácidos e relativamente pobres. Nos solos argilosos e húmidos não prospera, e nos muito férteis a folhagem desenvolve-se em demasia e perde-se a qualidade.
Produção
Normalmente só se multiplica pela separação (não divisão) dos bolbos que vão nascendo em torno dos bolbos principais, escolhendo-se os de melhor calibre e aspeto.
O solo deve ser preparado vários meses antes da plantação, nomeadamente por meio de lavoura e incorporação de estrumes (10 a 20 toneladas por hectare).
Faz-se uma adubação de fundo, rica em fósforo, e uma adubação anual, de cobertura, no mês em fins de Julho, tendo nós encontrado a referência de 40 a 50 Unidades Fertilizantes de Azoto, de forma amoniacal, 80-100 unidades de fósforo e 100 a 120 unidades de potássio, preferindo-se o sulfato de potássio ao cloreto.
A plantação dos bolbos é realizada, normalmente, em Maio até ao final de Julho, em pequenos regos de cerca de 10 a 15cm de profundidade, espaçando-se os bolbos entre 10 e 15cm, de acordo com o labor que vier a ser empregado e linhas espaçadas entre 15 a 45cm (a decisão dependerá da forma de controlo das ervas infestantes). No total é normal serem necessários 300.000 bolbos para se plantar um hectare.
Os únicos cuidados culturais resumem-se a sachas e deservagens manuais, tendo que haver extremo cuidado para não atingir e danificar os bolbos. Alguns herbicidas podem ser utilizados, mas em Portugal nenhum está legalmente autorizado. Contudo, a sua utilização restringe-se ao período em que não há folhas, normalmente Junho e Julho.
Sanidade
A Rhizoctonia violácea é um fungo problemático nesta cultura, falando-se da vantagem em tratar os bolbos à plantação com fungicidas. Muitos insectos do solo como roscas, alfinetes e ralos podem danificar os bolbos, tal como o ratos. Os nemátodos são, contudo, os maiores problemas.
Em virtude das doenças fúngicas recomenda-se a não repetir a plantação mais do que 3 anos sucessivos no mesmo local.
Depois da colheita das flores (ou quando estas murcham naturalmente) aparecerem as folhas, que por sua vez é usual cortar mecanicamente quando começam a secar no final da Primavera, e depois arrancados os bolbos para serem guardados e replantados.
Colheita
Normalmente faz-se a colheita da flor inteira, cortando a flor com os dedos indicador e polegar à medida que as flores vão abrindo, (geralmente de Setembro a Outubro), pelo que dura vários dias.
Depois de colhidas as flores, geralmente em armazém, são separados os estiletes do resto da flor. Para tal, ao segurar-se a flor tem que se cortar a base da flor, com a unha, por exemplo, libertando deste modo os estigmas, que são estendidos em redes finas e deixados à sombra a secar, evitando-se temperaturas superiores 35ºC com suave ventilação, e virando pelo menos uma vez para a secagem uniforme.
Em estufa de secagem o processo leva cerca de 30 a 45 minutos, correspondendo a perda de cerca de 80% do peso, sabendo-se que se atingiu o ponto certo quando o açafrão deslizar uns sobre os outros.
Para se produzir 1kg de estiletes frescos são necessárias cerca de 80kg de flores, ou seja, cerca de 100.000 a 140.000 flores.
Em um hectare é possível, no primeiro ano, produzir-se até 15kg de açafrão por hectare, eventualmente 30kg no segundo e 20kg no terceiro. Para o trabalho de colheita de um hectare são requeridas pelo menos 20 pessoas, ficando ocupadas pelo menos 2 meses.
O açafrão só encontra em Portugal algumas restritas zonas de produção, sendo, como se compreende, os maior problemas serão ter climas secos, mão de obra disponível e uma baixa pressão de ervas infestantes, pois as sachas são muito custosas.
A produção, infelizmente, em grande escala só pode ser orientada para exportação, dado o baixo consumo nacional, havendo forte concorrência de mercados de mão de obra mais barata e onde a produção está bem organizada.
Em Espanha a produção merece algum prestígio, pela qualidade, de modo que esta se tem mantido, apesar da concorrência de outros países. É uma cultura que não negamos possa ter sucesso em Portugal, mas que deve ser de entusiasmo restrito, em virtude dos elevados custos de instalação e produção, assim como o risco internacional associado.